O futuro da Irmandade de Misericórdia de Campinas

Quem mora ou visita Campinas e passa pela Avenida Júlio de Mesquita, em um dos bairros mais tradicionais da cidade, talvez não faça ideia da dimensão da Irmandade de Misericórdia, complexo que abriga a Santa Casa e Hospital Irmãos Penteado. Ícone de resgate cultural e histórico de Campinas, a Irmandade já recebeu figuras ilustres como Princesa Isabel e D. Pedro II; um elo entre o passado e o presente, com uma história centenária na cidade.

A Irmandade, que este ano completa 151 anos, também faz parte da minha história, não apenas pela sua presença majestosa no bairro em que cresci e onde muitas vezes busquei atendimento, mas especialmente por eu ter me tornado irmã da instituição, título concedido a pessoas divididas em três categorias: colaboradores, benfeitores e beneméritos, com direitos e deveres, entre os quais “promover o engrandecimento e a prosperidade da Irmandade, solidarizando-se na consecução de seus objetivos”.

Ao me deparar com a publicação de duas matérias no jornal da cidade, nos dias 4 e 7 deste mês de agosto, cujos textos falam de uma parceria público-privada, que tem a Irmandade como foco principal, me senti na obrigação de buscar informações sobre o assunto, principalmente por que na próxima sexta-feira, dia 12 de agosto, acontecem eleições que definirão o seu futuro.

De fato, essas não são as únicas matérias divulgadas na mídia sobre a tal parceria, nos últimos tempos. Com uma rápida pesquisa na internet observei que existem outras, com informações desencontradas e declarações contraditórias.

De qualquer forma, é imprescindível lembrar que a Irmandade de Misericórdia de Campinas, provedora da Santa Casa e do Hospital Irmãos Penteado, surgiu a partir do idealismo do Cônego Joaquim José Vieira, o conhecido Pe. Vieira, que sonhava com a fundação de um Hospital que atendesse as camadas mais pobres da população de Campinas e região, e que após uma forte campanha de doações junto aos mais ricos, recebeu, em 1869, da senhora Maria Felicíssima de Abreu Soares, viúva do Comendador Joaquim José Soares de Carvalho, o terreno de cerca de 26 mil metros quadrados, para que nele fosse construído o hospital.

Pe. Joaquim José Vieira

Atualmente, a área doada abriga não só a Santa Casa e o Hospital Irmãos Penteado, mas também o Centro de Queimados, a Capela Nossa Senhora da Boa Morte, e toda a estrutura de apoio hospitalar instalada nas áreas adjacentes aos prédios.

Vista aérea Irmandade de Misericórdia de Campinas / Foto: Carlos Bassan

Por conta da generosidade de alguns campineiros, ao longo dos anos, a Irmandade recebeu doações significativas, que possibilitaram não apenas a construção dos prédios existentes, mas também a compra de vários imóveis que hoje compõem seu patrimônio e agregam valor à manutenção dos hospitais.

Entrega da Santa Casa para a Irmandade / Agosto 1876

De acordo com as publicações, há uma negociação em curso que visa construir um novo complexo imobiliário, mas elas não deixam claro o futuro dos prédios centenários e todo patrimônio histórico, arquitetônico e cultural do local. Também não esclarece a contrapartida pelo investimento previsto de R$ 500 milhões. Me chamam atenção nas matérias, uma hora falarem de projeto, outra de proposta, e depois de contrato; os aportes já realizados e; principalmente, por omitirem, nas duas ocasiões, uma questão muito importante: a ação judicial que envolve a negociação.

Embora a última matéria publicada afirme que a negociação tem apoio incondicional da maioria dos conselheiros que compõem a Irmandade, não é isso que estamos vendo, o que torna a questão bastante preocupante.

Um grupo de irmãos que fazem parte da atual gestão, criou uma chapa de oposição, depois de terem entrado na justiça – e ganho em duas instâncias – um pedido de suspensão dos contratos, impedindo a transferência dos hospitais para bairro afastado, assim como impedindo a demolição do Centro de Tratamento de Queimaduras, Hospital do Coração e clínicas localizadas nas adjacências (os documentos referentes à ação podem ser acessados neste link). Eles afirmam que, mais que o patrimônio imobiliário, a negociação põe em risco a própria existência da Santa Casa, desvirtuando sua finalidade e não garantindo sua sustentabilidade financeira nem no presente e nem no futuro.

A chapa Santa Causa, traz médicos, advogados, administradores, religiosos, empresários e engenheiros, denominados “guardiões da Santa Casa”, que sugerem uma renovação da administração, o que é sempre saudável em se tratando de sociedade democrática.

Não há dúvidas da importância da Irmandade, não só no aspecto histórico e cultural, mas principalmente no trabalho que vem sendo realizado desde sua fundação na preservação e cuidado da saúde não só dos moradores da região, mas, principalmente, dos mais carentes.

O futuro da Irmandade de Misericórdia de Campinas deve ser decidido nesta sexta-feira. De um lado, o atual provedor visa permanecer no cargo com objetivo de seguir com a construção do novo complexo imobiliário no local, claramente priorizando o aspecto financeiro do negócio.

De outro lado, um grupo de irmãos dissidentes busca renovar a administração com proposta de gestão moderna, inovadora e transparente, mantendo a Irmandade onde está, reativando o centro de estudos, o centro de formação médica, reabrindo e implantando novas áreas de atendimento, reorganizando pronto-socorro e estacionamento, abrindo canal de comunicação e ouvidoria, com criação de um código de ética, ampliando convênios atendidos, fortalecendo o SUS, reabrindo a capela para missas diárias e, principalmente, conservando e respeitando os anseios de seus fundadores e sua história local.

Estamos diante de uma situação que poderá mudar o futuro da Irmandade, por isso, é de extrema importância que os irmãos se informem bem e votem com consciência e responsabilidade.

A decisão de agora certamente irá refletir no futuro da nossa história.


Isabelle Sabbatini é advogada, curadora e produtora de conteúdo da Absoluta