Não, esta não é uma boa notícia. Os números de transplante de córnea não caíram porque a o problema deixou de existir. Desde a chegada da pandemia ao Brasil, em março de 2020, o transplante e a captação de córnea sofreram forte queda. Dados da ABTO (Associação Brasileira de Transplante de Órgãos) mostram que em 2020 o número de transplantes caiu praticamente pela metade, totalizando 7,1 mil cirurgias ante 14,9 mil em 2019. No ano passado, o levantamento da ABTO revelou que o procedimento continuou 16% abaixo da pre-pandemia com 12,7 mil brasileiros transplantados.
E o pior: a fila de espera neste período cresceu cerca de 80%, saltando de 10,7 mil inscritos no final de 2019 para 18,8 mil em dezembro de 2021.
Para o oftalmologista Leôncio Queiroz Neto, presidente do Instituto Penido Burnier de Campinas, este balanço explica a estimativa de um estudo inédito publicado este mês na revista científica CORNEA – O Brasil vai precisar aumentar 34% os transplantes mensais em São Paulo e em 91% no país para daqui a dois anos retomar o número de inscritos na fila de espera antes da pandemia.
O médico ressalta que o mais dramático é que 7 em cada 10 dos que aguardam por uma córnea são jovens. Isso porque, no Brasil, a maior causa de transplante de córnea é o ceratocone que geralmente surge no início da adolescência. A estimativa do CBO (Conselho Brasileiro de Oftalmologia), do qual o médico faz parte, é de que 100 mil brasileiros têm a doença. No topo do ranking de inscritos na fila de transplante estão moradores de São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais.
Para Queiroz Neto, o fim da pandemia ainda é controverso e, por isso, nunca foi tão importante manter o acompanhamento do ceratocone em dia. Uma evidência disso é a constatação em um recente estudo publicado no JAMA, conceituado jornal da Associação Médica Americana, que revelou que 55% das córneas de falecidos infectados pelo covid carregam partes do vírus. Isso significa que as captações podem continuar baixas enquanto o coronavírus circular entre nós.
Sintomas e fatores de risco
O oftalmologista explica que o ceratocone enfraquece e afina a córnea, lente externa do olho que vai tomando o formato de um cone conforme progride. “No início pode ser corrigido com óculos e frequentemente é confundido com astigmatismo pelos sintomas em comum: visão desfocada para perto e longe, fotofobia, ofuscamento e visão embaçada”, salienta. A principal diferença é a troca mais frequente dos óculos que passam a não oferecer boa correção visual conforme o ceratocone progride. Quem faz parte dos grupos de risco deve passar por uma tomografia na córnea ainda na infância, quando a progressão é mais acelerada.
Os principais grupos de risco elencados pelo médico são pessoas que têm casos na família, alergia, síndrome de Down, olho seco, hábito de coçar os olhos, apneia do sono, miopia e alta miopia.
Diagnóstico
O especialista destaca que a tomografia pode flagrar o ceratocone bem no início. “Em alguns pacientes a doença provoca saliências na face interna da córnea. Este exame permite o diagnóstico precoce por avaliar milhares de pontos da superfície interna e externa”, afirma. O problema é que um levantamento conduzido por Queiroz Neto com 315 portadores de ceratocone revela que só 3% foram diagnosticados na infância quando a doença tem progressão bastante rápida.
Tratamentos
O único tratamento que interrompe a progressão em 90% dos casos é o crosslinking. O procedimento é ambulatorial e feito com uma gota de colírio anestésico. Ele aumenta em até três vezes a reticulação das fibras de colágeno e consiste na aplicação de vitamina B2 (riboflavina) e luz ultravioleta na córnea. Em três dias as atividades podem ser retomadas. Queiroz Neto destaca que o croslinking é contraindicado para córnea fina, olhos com cicatrizes, portadores de glaucoma, histórico de herpes e outras alterações externas nos olhos.
Outro tratamento é o implante de anel intraestromal que aplana a córnea, deixando a lente mais estável no olho e melhorando a visão. Para quem tem muito desconforto no uso de lentes rígidas para corrigir o ceratocone, uma alternativa para escapar do transplante é a lente escleral que invés de ficar apoiada na córnea se apoia na esclera. “Igual a todas as outras doenças, no ceratocone a prevenção continua sendo o melhor remédio, principalmente porque no transplante pode ocorrer rejeição”, conclui.
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